5/06/2008

Elo, Entrelinhas e Alucinações II

Só o que se via eram as costas do presidente Cacareco. Estes momentos de suspense duraram até o instante em que Robert começou a se mover. Tentando se colocar de pé, perturbado por causa da pancada, ele segurava uma lasca de pedra que a sua cabeça arrancara do grande mineral que o derrubou. Erguendo o braço a fim de observar o objeto contra a luz do sol, intrigado com a coloração amarelada sob a camada de lodo, Cacareco observava fixamente a pedra.
“É amarela?”, perguntou a si mesmo.
As palavras do presidente eram pronunciadas com certa apatia e imprecisão. O tombo deixara Cacareco um pouco zonzo. O sangue escorria em filetes pelo rosto através do corte acima da sobrancelha direita. O líquido lhe estorvava a visão. Seus olhos esbugalhados estavam vidrados, como os de quem acabara de acordar após uma noite regada a delirantes e apaziguantes e alienadamente entorpecentes tranqüilizantes.
“É amarela! É ouro! É ouro!”, gritou para o espanto geral, sem saber muito bem como reagir diante da ocasional descoberta.
Ninguém dizia uma única palavra, somente se dava interjeições de surpresa. Os jornalistas estavam certos de que tinham uma excelente matéria em mãos. Desde o princípio eles não queriam ter vindo a Santa Juliana do Playmobil. Foram forçados a embarcarem naquela viagem pela intuição do editor da revista. Subiram no avião sem a mínima esperança de realizarem um trabalho relevante.
“Playmobil! Que porcaria de lugar é este?”
Agora se obrigavam a reconhecer que a intuição do chefe era um verdadeiro fenômeno. Não era por acaso que ele dirigia um dos maiores e mais respeitados periódicos do mundo. Os estrangeiros discretamente acenaram ao fotógrafo: queriam que todos os acontecimentos fossem registrados. O último não demorou a compreender os gestos.
O fotógrafo foi até a horrorosa maleta preta, novamente empunhou a máquina, retirou a tampa da lente e começou a clicar a esmo. Foram dezenas de disparos tendo a cachoeira como fundo, os raios solares incidindo diretamente sobre a superfície da água, dando-lhe um aspecto cintilante e revelando o fundo do lago, e Robert Cacareco à frente, o braço em v estendido para o alto, o rosto voltado para o céu alinhado em diagonal com a pedra, que o presidente ainda observava como um abobalhado bufão sob hipnose.
“Não foi uma boa idéia deixar os jornalistas tirarem fotografias. Era sua a obrigação de impedi-los!”, disse Castro Emergencial assim que tomou conhecimento dos fatos que se sucederam na Cachoeira do Quiabo Lustroso.
A testa de Robert Cacareco apresentava um curativo grotesco. Dali escorria um fedorento emplastro de raízes preparado pelo Ministro da Geração Saúde Plena. O presidente não estava gostando nem um pouco das observações de Castro, embora respeitasse as suas preocupações, que se referiam sobretudo à descoberta que a cabeçada Cacareca lhes proporcionara. “Emergencial: um grande estraga-prazeres! Assim estará escrito em sua lápide!”, pensou Robert.
Os jornalistas não tinham a menor importância. Quem precisava deles? Agora Robert Cacareco não precisava de nenhuma pessoa que vivesse além dos limites de Santa Juliana. Que os turistas fossem visitar outro lugar bem distante de Playmobil! Que visitassem o espaço sideral! Que fossem parar no inferno! Quem precisaria deles com tanto ouro à disposição?
O nome do presidente entraria para a história por méritos de seu próprio país. Nenhum playmobilense serviria como empregado ou tapete de se limpar os pés a maçantes estrangeiros e suas exigências pedantes. Fora por absoluta falta de opções que Cacareco investira esforços na idéia de transformar Santa Juliana em um centro turístico. Tão somente por isso.
Robert Cacareco, assim como qualquer outro playmobilense, jamais se esqueceria de que nos tempos da exploração dos países colonizadores Playmobil fora abandonado à sua própria sorte e se tornara motivo de chacota. Também era impossível relevar as portas que se trancaram quando o presidente mandara Castro mendigar a ajuda da comunidade internacional.
“Nós encontramos ouro! Você não percebe a magnitude de tal descoberta?”, perguntou Robert, lançando a pedra sobre a mesa do gabinete presidencial em direção a Castro, certo de que nenhuma palavra do Ministro das Harmoniosas e Irrestritas Relações Internacionais o desanimaria.
A sala estava abafada. O presidente costumava trancar a porta e as janelas e se encerrar no gabinete sempre que precisava refletir. Robert Cacareco gostava de pensar sem interferências exteriores. Ele instruíra os assistentes a impedirem a entrada de qualquer pessoa. Todavia Castro era mestre em dissuadir os descendentes de aborígines que trabalhavam na sede governamental.
Estudando minuciosamente a pedra que segurava entre os dedos, Castro chegava a se entusiasmar. Contudo um pressentimento inexplicável fazia com que mantivesse a cautela. Sua personalidade não condizia com arroubos e manifestações exacerbadas de qualquer tipo. A reação mais intensa que o maior comediante do mundo conseguiria de Castro Emergencial seria um discreto sorriso de canto de lábios.
“Precisamos ao menos mandar fazer alguns exames!”
Robert estava ficando cansado daquela ladainha. Obviamente verificar a composição da pedra constava em seus planos, mas havia coisas mais importantes a serem resolvidas. O futuro de Playmobil estava em suas mãos e ele precisava medir cada passo antes de tomar qualquer que fosse a iniciativa. Cacareco acreditava que nem todos os passos em falso levavam a minas de ouro.
“Não posso perder tempo com bobagens!”, concluiu o presidente. Ele ansiava por tranqüilidade a fim de pensar no futuro. Portanto mandou Castro localizar Saulo Custof Maritaca para que os dois seguissem viagem até a ilha vizinha. Ali providenciariam o tal exame e lhe deixariam em paz. Robert confiava em Emergencial, mas não queria que ele se sentisse tentado a embolsar a pepita. Maritaca seria o seu desestímulo.

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