5/18/2008

Elo, Entrelinhas & Alucinações III

A intenção de Robert Cacareco ao empreender tantos projetos, era de que todo o dinheiro trazido pelos pretendidos turistas fosse parar diretamente nas mãos dos habitantes. Por sua vez, os playmobilenses “doariam” dez por cento de tudo o que arrecadassem para os cofres do governo de Santa Juliana. Tratava-se dos primeiros impostos tributados naquela nação. Era a economia de mercado finalmente tomando conta de Playmobil.
Obviamente uma parte substancial dos impostos seria desviada aos bolsos Cacarecos. O presidente se sentia no direito a uma gorda comissão. Com o dinheiro restante, porém, Robert poderia fazer os demais investimentos estruturais de que o país tinha necessidade.
Depois que Playmobil tomasse os turistas dos outros países e se desenvolvesse, ninguém teria coragem de continuar a fazer chacotas sobre a nação que ele governava. Então o nome do presidente enfim seria reconhecido. Cacareco se tornaria a figura mais importante que já pisou naquele solo.
“Danem-se todos eles!”, disse Robert consigo mesmo.
Ele se perdeu tão profundamente a imaginar, com um sorriso de triunfo nos lábios, o esplêndido futuro que os playmobilenses trilhariam sobre uma calçada pavimentada com pedras preciosas, que nem ao menos se deu conta da persistente presença de Maritaca no gabinete presidencial. Saudosista como nunca fora, a lembrar-se das terras por onde passara, Saulo Custof não seguira Emergencial quando o mesmo partiu em direção a seu descanso.
Maritaca simplesmente se sentou no desconfortável e sufocante sofá de capa de couro e se entregou às lembranças... A imensidão do oceano, o garçom no navio; a arquitetura gótica, as prostitutas e o cafetão; os canais e gôndolas, o casal e a água podre; os castelos e monumentos, o soldado da guarda-real e sua potente lança.
As cortantes palavras Cacarecas despertaram Maritaca de um de seus raros momentos de torpor e silêncio. Robert sentara ao seu lado e lhe dera alguns tapinhas nas costas. Por que cargas d’água o privavam com tanta falta de sensibilidade de suas tão doces lembranças?
“Meu caro Maritaca! Tenho grandes planos para nós! Grandes planos!”, disse Cacareco, exagerando na inflexão da palavra “grande” e abrindo os braços a fim de dar ao futuro Ministro da Publicidade Hipnótica uma idéia mais aproximada da dimensão de seus planos.
No entanto as semanas se sucediam e nenhum navio ancorava no modesto e recém construído porto de Santa Juliana. Nenhum turista pisava em solo playmobilense impulsionado pelas peças publicitárias colhidas através do concurso de slogans. As pousadas, restaurantes, bares, lanchonetes, os bordéis de Teobaldo de Salto Alto, o grandioso casino de Moputo Krivatlinclável, tudo, enfim, estava à mercê das moscas.
Tanto Cacareco quanto a população estavam inconsoláveis. Robert se perguntava sobre a possibilidade de Emergencial e Maritaca terem embolsado o suado dinheiro que se arrecadou a fim de divulgar as belezas de Santa Juliana. A maior parte deste montante, inclusive, Cacareco tirou do próprio bolso, minguando cada vez mais uma herança que nunca fora propriamente suntuosa.
Era verdade que Castro e Saulo Custof andavam estranhos desde que voltaram de sua viagem pelos continentes, mas a desconfiança do presidente só ganhava força nas horas em que o desespero o dominava. Era quando o sol se escondia sem que nenhum turista tivesse se bronzeado nas praias de Playmobil. Era quando Robert Cacareco tomava consciência de que as bebidas alucinógenas, os refrigerantes exóticos, os petiscos rústicos condimentados, etc., continuavam a lotar os tonéis e bombonieres das lanchonetes e pub’s, e que ninguém compartilhara das camas das prostitutas descendentes de aborígines meticulosamente treinadas para darem o máximo prazer aos seus clientes.
Três meses transcorreram e o peito de Cacareco não mais se enchia de ar e esperanças quando o presidente pensava em turistas. A população nem ao menos se aproximava das construções que erguera com parcos instrumentos e tamanho esforço. Estava tão decepcionada quanto Robert e muitas vezes também sentia vontade de destruir absolutamente tudo.
Pela primeira vez Cacareco não tinha a menor idéia sobre o que fazer. Ele apostara e se dedicara pra valer àquele projeto. Estava profundamente cansado, sentado na cadeira de uma presidência que nada significava, os mosquitos a zumbizarem no calor do ambiente, centenas de papéis sobre a mesa exibindo os slogans escolhidos para divulgarem as belezas de Playmobil. Por que ninguém se interessara por Santa Juliana? Malditos!
Subitamente um barulho despertou Cacareco de suas desanimadoras, injuriosas e monótonas reflexões. Tal ruído foi seguido por alguns gritos histéricos dados pelos transeuntes que se encontravam próximos à sede do governo. Dois assessores adentraram o gabinete presidencial. Eles apresentavam a mesmíssima expressão de medo. Estavam sem fôlego e Robert teve que controlar a ansiedade até que os dois se recuperassem.
A maioria dos habitantes nem ao menos ouvira falar sobre aquele enorme “pássaro de aço” que cruzava os céus playmobilenses à procura de um campo de pouso, berrando monstruosamente e em altitude cada vez menor. Pensou-se numa punição dos deuses ou na invasão de uma espécie animal bastante perigosa. Qual seria a presa de tal aberração? Será que o monstro se alimentava de carne humana assim como os lendários antepassados aborígines?
Robert saiu às ruas pedindo calma aos eleitores. Mandou alguns assessores espalharem a notícia de que aquela máquina transportava os primeiros turistas de Santa Juliana do Playmobil. Cacareco sabia que em menos de duas horas todo o país já teria sido informado.
Ninguém conhecia a fundo o sistema de comunicação dos descendentes de aborígines. O fato é que as mensagens transmitidas através de toques ritmados de tambor percorriam o território nacional numa velocidade espantosa. Não era um sistema tão instantâneo como os constituídos pelos maravilhosos aparelhos tecnológicos a que estamos acostumados, mas logo todos os playmobilenses souberam da incrível aeronave que pousara a dois quilômetros da capital Moputo.
Tratava-se de um monomotor bastante vagabundo, com capacidade máxima para cinco passageiros. Mesmo assim o seu pouso, numa clareira próxima à Praia do Peixe Gordo e Azarado, serviu para que a empolgação se propagasse por Santa Juliana. Robert e o país que ele governava recobraram as suas esperanças. Será que os corajosos visitantes transportados pelo monstro de aço eram muito ricos?


Daniel Ricardo Barbosa, in "Elo, Entrelinhas & Alucinações"

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