4/23/2008

Elo, Entrelinhas e Alucinaçoes I

A história deste venerável país chamado Santa Juliana do Playmobil só começou a mudar alguns anos depois do plebiscito que riscara o Furo Grande dos mapas. Tais mudanças aconteceram por intermédio do acaso. Tudo se deu quando o primeiro presidente eleito pelo voto direto da população, Robert Cacareco, movido pela vaidade, praticamente sozinho, tomou para si a responsabilidade de resolver os problemas e carências dos playmobilenses.
Robert Cacareco nascera numa cidade chamada Teobaldo de Salto Alto, cem quilômetros distante da capital Moputo Krivatlinclável, no seio de uma das raras famílias playmobilenses que possuíam algum dinheiro.
Os avós Cacarecos saíram de uma condição extremamente desfavorável. Chegaram ao cúmulo de prestarem serviços domésticos em residências de decadentes famílias nobres. Tiveram visão ao investirem num ramo que a maioria das pessoas considerava indigno. Transformaram-se nos maiores comerciantes de roupa íntima do Velho Mundo. Aproveitaram-se do fato de que quase não havia concorrência e se deram muito bem.
Numa época em que poucos podiam se vangloriar de possuírem fortuna, os pioneiros avós Cacarecos matavam o tempo comprando grandes propriedades. Adquiriram três castelos de aristocratas falidos. Eram donos de várias fazendas de produção de vinho. Passavam as férias em uma de suas belas estâncias. Não se importavam com a fama de déspotas e exploradores do trabalho alheio que pesava sobre eles. Caminhavam orgulhosos em meio à burguesia de sangue azul e bolsos vazios.
Casaram o filho com a sobrinha de um sucessor ao reinado de um país tradicionalíssimo. Garantiram nobreza à descendência Cacareco. Infelizmente a intuição dos avós não poderia sempre acertar. Quando eles souberam que uma das Partes Unidas do Furo Grande fora destinada ao país onde viviam, acharam que a exploração de recursos naturais em tal lugar se tratava de um bom negócio e decidiram expandir seus investimentos.
Para administrar o novo empreendimento enviaram o filho, Paco Cacareco, junto à sua esposa, para Santa Juliana. Dois anos se passaram e os avós só tiveram prejuízos. Durante muito tempo acreditaram que Paco estava lhes aplicando algum tipo de golpe. Se o filho não parasse de roubá-los e não enviasse algum dinheiro fruto da exploração de recursos em Playmobil, logo eles seriam obrigados a vender algumas de suas propriedades. Isto estava fora de cogitação.
A confiança na honestidade do filho só se restabeleceu quanto todos os países envolvidos na exploração decidiram abandonar os territórios de Santa Juliana do Playmobil. Então os avós desistiram dos investimentos e deixaram de enviar dinheiro a Paco. Antes arcar com os prejuízos que tal empreitada já lhes impingira do que seguir alimentando um buraco sem fundo.
Paco e sua esposa Cacareca, no entanto, permaneceram muito tempo longe da tirânica influência de seus respectivos progenitores. Acabaram percebendo que havia vida além do clã e preferiram continuar em Santa Juliana. Afeiçoaram-se aos habitantes daquele país tão desprovido de tudo. As relações interpessoais eram calorosas. Tudo muito diferente da frieza aristocrática que eles passaram a abominar. Além disso, o casal era respeitado. Todos ouviam seus conselhos.
Os avós Cacareco pensaram em deserdar os insurgentes, mas um incêndio numa de suas dionisíacas estâncias os carbonizou no momento em que eles tentavam descobrir a aplicação de uns brinquedos sexuais que haviam comprado. Os avós não tiveram tempo de consolidar seus planos contra os descendentes.
Paco e esposa sentiram profundamente a perda, mas não quiseram participar de ritos fúnebres. Mesmo porque não restara restos mortais para prestar homenagens, velar e enterrar. O casal vendeu todas as empresas e propriedades da família e passou a viver de juros bancários. Mais do que nunca eles precisavam de dinheiro, pois em breve um outro Cacareco viria ao mundo.
Paco não se conteve de felicidade quando o seu filho nasceu. Sofreu uma parada cardíaca e faleceu depois de passar dois dias sob os cuidados de curandeiros descendentes de aborígines. A grande comoção dos habitantes de Teobaldo de Salto Alto mostrou o quanto aquela pequena família era querida. Mimi Dolores Albuquerque Bragança Falastrona Cacareco, a esposa, jamais se recuperou.
Mimi casara porque a sua tutela pertencia aos tios e eles a obrigaram a contrair o matrimônio. Com o passar do tempo ela aprendeu a amar Paco Cacareco. Ele a surpreendeu desde o momento em que os dois se colocaram perante o altar. Enquanto o sacerdote, considerado o melhor mestre de cerimônias do Velho Mundo, dizia suas incautas e infindáveis palavras sobre amor e fidelidade, Paco parecia estar mais nervoso do que a própria Mimi.
“Tenha calma! Já está acabando!”, sussurrou Mimi no ouvido do noivo.
A noite de núpcias fora completamente diferente do que ela pensou que seria. Quando soube que os seus tios haviam marcado o casamento sem ao menos pedirem a sua opinião ou lhe informarem o nome do noivo, Mimi começou a imaginar infinitas e grotescas cenas a respeito de lua-de-mel e perda de virgindade.
Ela imaginou um esposo rude, voraz, sem educação, porco, atrapalhado. Imaginou tal pessoa sobre o seu corpo a lhe sufocar com o seu peso. Ele a atacaria cheirando a cerveja, gordura, suor. Exploraria a intimidade de Mimi com seus dedos sujos e um colossal membro latejante a exalar por todo o quarto um odor acre. Um futuro terrível começaria na noite de núpcias e só terminaria quando um dos cônjuges morresse.
Paco Cacareco, no entanto, surgiu na igreja com seu frágil rosto de bebê. Ele era branco como uma porcelana. Parecia não ter sangue nas veias. Parecia doente. Era tão delicado! Parecia uma mulher. Pobre coitado! Uma criança de traços finos, nariz pequeno, compridos e encaracolados cabelos loiros. Uma criança precisando de ajuda. As cenas que Mimi imaginara se desfizeram imediatamente.
Os noivos não conseguiram trocar uma única frase durante a festa de casamento. Eram centenas de convidados presentes no enorme salão do castelo a interromperem com seus cumprimentos hipócritas e invejosos e nenhuma frase minimamente inteligente. Quando eles finalmente puderam abrir a porta do quarto que partilhariam como casados, marido e esposa, para sempre, ficaram longos minutos de pé a observarem a imensa cama com seu cortinado semi-aberto. Ambos enrubesceram.
Em menos de vinte minutos Mimi percebeu que todas as iniciativas teriam que ser tomadas por sua pessoa. “Será que ele me achou muito feia, magra, esquisita?”, pensou. Eles trocaram de roupa no mais absoluto silêncio. O problema é que Paco estava tão constrangido por ter sido obrigado a se casar com uma completa desconhecida quanto Mimi estava.
Começaram a falar sobre o equívoco que era se casar sem nunca ter visto o pretendente, mas não pararam de descobrir coisas em comum. Falaram toda a madrugada sobre os mais diversos assuntos. Era como se eles estivessem frente a frente com a única pessoa que conhecia o seu íntimo. No mínimo estabeleceram uma estreita amizade.
Nas semanas seguintes, Paco Cacareco e Mimi Dolores Falastrona acabaram se apaixonando, mas um bom tempo se passou antes que eles resolvessem trepar. Aconteceu assim que o casal se livrou da repugna que a pressão dos progenitores por netos causava. E foi belo, transar. Fazer amor com tanta delicadeza, sem nenhuma pressa. Foi intenso e inesquecível.
O que poderia atrapalhar a harmonia do casal, a irritante intromissão dos velhos Cacarecos, que deixaram de freqüentar suas estâncias com o único objetivo de coagir e admoestar os cônjuges, logo teve um fim. Os avós Cacarecos concluíram que os jovens não eram sexualmente ativos a ponto de lhes dar netos. Portanto seriam obrigados a trabalhar administrando os novos investimentos da família.


Daniel Ricardo Barbosa, in "Elo, Entrelinhas e Alucinaçoes"

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